'... o que há num nome?'


01 AGO 2006



Demi Getschko

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo

Em dez dias Túnis estará sediando o encontro mundial da Sociedade da Informação, o WSIS. Na pauta, umdos temas hoje polêmicos:a "governança" da Internet. Governança, aliás, é um dos modismos atuais. Fala se de governança em todas as áreas, começando pela pública, passando pela empresarial e, em breve, quiçá, até "governança na família". Assim, não é de se estranhar que a Internet, essa nuvem amorfa que cada vez mais nos rodeia, também não se tenha safado dessa discussão. Afinal, cada vez parcela maior do comércio, das transações, da geração de bens e riquezas segue o caminho que nós todos já estamos trilhando há algum tempo: a substituição do físico pelo virtual, da conversa pelo teclado e pelo vídeo, do convívio pela troca de bits.

Nunca é demais relembrar que a Internet é uma construção cooperativa, onde inicialmente a academia, instituições de pesquisa (notadamente as americanas) ligadas ou não ao governo, e algumas empresas pioneiras uniram-se na formulação desse ambiente que, de experimental tornou- se corriqueiro e, mais que isso, vital. Tratar de "governança" para algo fluido e ubíquo como a Internet não é assunto fácil. Costumo dizer que há níveis de governança. Alguns mais baixos, próximos à infra- estrutura e normalmente pouco visíveis aos "não-iniciados", e outros que nos afetam a todos, indistintamente.

Certamente, a praga do "spam", os ataques fraudulentos aos usuários, o roubo de informações e senhas, a invasão de computadores, pornografia infantil e tantas outras mazelas, que a rede não inventou nem trouxe, mas que pela Internet ganharam uma expressão nova e assustadora, são tópicos dessa "Governança", com maiúscula. Já a distribuição de números que permitem às máquinas participarem da rede, a forma de traduzir nomes para números, numa gigantesca e internacional" lista telefônica"da Internet- o DNS Domain Name System , bem como o conjunto de protocolos que regem o funcionamento dessa rede, fazem parte de outro tipo de "governança", mais afeito aos técnicos e aos que cuidam das "casas de máquinas" da rede.

Entretanto, por força dos fatos, é essa última "governança" a que mais se discute hoje. Por uma sucessão de causas, de problemas, de pressões e contra pressões, notadamente ocorridos e existentes nos EUA, o assunto de nomes e números ganhou uma conotação estratégica e uma importância (exagerada?) que o faz ser um dos focos da discussão em Túnis. O que historicamente era trabalho de um único (porém notável) indivíduo, hoje é tema de uma organização com orçamento anual de US$20 milhões. O que Jonathan (Jon) Postel fazia praticamente sozinho na Internet Assigned Numbers Authority (Iana)- a tarefa de repassar números e cuidar da raiz da" lista telefônica" daInternet- hojecabeà InternetCorporationforAssigned Names and Numbers (Icann),da qual a Iana é parte. E é exatamente sobrea Icann que o foco está concentrado.

Concebida como uma organização sem fins lucrativos, sob as leis da Califórnia, instalada no mesmo prédio onde Jon Postel trabalhava até sua morte em 1998, a Icann tenta se configurar como uma organização internacional, com representação dos diversos setores interessados e com espaço para a opiniãodosgovernos,via Governmental Advisory Committee (GAC). Mas, então, qual o problema de governança que temos? Ocorre que, como sempre, o diabo se esconde nos detalhes...

Primeiramente, a temática da Icann foi herdada do seu problema inicial: como quebrar o monopólio do "negócio" de nomes de domínio nos EUA, que estava praticamente concentrado no gestor do .com, do .net e do.org,todos sob a Network Solutions, incubada na área acadêmica sob a égide da National Science Foundation e, depois de constituída e privatizada, adquirida pela Verisign.

Em segundo lugar, a tensão que a própria Icann criou, ao trazer para o palco uma diversidade de organizações em busca de participação, como a World IntellectualPropertyOrganization( Wipo), a International Telecommunication Union(ITU), o próprio GAC, montado a partir de setores usualmente não participantesdo "núcleo" original da rede.

E em terceiro, e mais grave, o fato de que a Icann não controlava nem controla, de fato, algumas das estruturas centrais da rede: os operadores dos servidores- raiz do DNS continuam os que historicamente operavam esses servidores, independentes, orgulhosos de seu trabalho voluntário e sem contrato com ninguém.

O próprio servidor-mestre A, de quem emana todo o conteúdo a ser distribuído aos demais servidores-raiz, continua a ser operado em seu local original, agora dentro da própria Verisgn. Pior que isso, as alterações que a Icann, por direito, decidir fazer no conteúdo da raiz A têm de ser homologadas pelo Departamento de Comércio dos EUA, com o qual Icann tem um memorando de entendimentos (MoU) que expirará em 2006.

Essa situação anômala, dada a essência da Internet, vem do fato de que o Departamento de Comércio ficou com o papel de gerir a transição, das antigas estruturas acadêmicas para a Icann. E, enquanto essa transição não for considerada terminada, vige o memorando de entendimentos que dá aos EUA (via Departamento de Comércio) esse papel de "autorizar" as mudanças que a Icann decide fazer na raiz do DNS...

Assim, a homologação por um único país das alterações na raiz do DNS, que teoricamente terminaria em 2006, tornou-se o estopim da discussão. Certamente, não faz sentido que apenas um país possa "aprovar" ou não o que se incluirá ou removerá da raiz de nomes da Internet. Certamente, a própria Icann e a comunidade ao redor contava (e ainda conta) que em 2006 essa situação provisória, criada sob pretexto da "transição controlada da rede para o setor privado", estaria terminada.O que não se imaginava é que esse ponto seria o "pomo da discórdia" na discussão do WSIS. E que ele gerasse a radicalização que gerou: de um lado, declarações americanas, de que "não abrirão mão do controle da rede" (mesmo que,como dito,essa frase não tenha a força que pretende ter) e, de outro, o resto do mundo, com o Brasil em posição de destaque, advogando um compartilhamento da supervisão da raiz. A comunidade técnica acha que, de fato, a rede é descentralizada a ponto de não existir esse "centro de controle", especialmente se tratando de uma "lista de nomes". Segundo o conceito da rede, nem os americanos têm o controle que alegam, nem os demais países estão à mercê de alguma força desconhecida. A rede se sustentará com ou sem controle central.

É conhecido o dito de que a "Internet considera qualquer intromissão um 'defeito na rede', e o contornará de alguma forma". Entretanto, há que se convir que o discurso americano é incoerente se por um lado apregoam que a rede é basicamente privada e da sociedade civil, sem que se desejea interferência pesada dos governos, por outro lado insistem em manter unicamente nas mãos dos EUA a função de "homologadores" das alterações que se fizerem na raiz. Se é verdade que não há nenhum exemplo até hoje de "ação" ou "veto" do Departamento do Comércio sobre dados da raiz, é igualmente verdade que a ferramenta para que essa interferência ocorra ainda está só nas mãos deles...

A nós, usuários fiéis e apaixonados pela rede mundial, resta torcer para que todos os (surpreendentemente) ótimos frutos que a rede trouxe: conteúdo ilimitado, direito de expressão ao cidadão comum, geração cooperativa de bens, "software livre", comunidades etc etc, não estejam em risco por medidas coercitivas, fracionadoras ou bloqueadoras que poderiam emergir desse debate.

A governança da Internet merece discussão extensa, não tanto por seus erros atuais,que existem e são muitos mas, principalmente, pelo vácuo em ações da" alta governança", que permitam maior segurança e respeito ao usuário, maior justiça na participação dos países e das comunidades, melhor penetração da rede em todas as camadas.

Que o "espírito da Internet" possa sobrenadar!

* Demi Getschko é membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil e um dos diretores eleitos da Icann