Algumas características inatas da internet

tipo: Documentos
publicado em: 04 de junho de 2008
por: Demi Getschko
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Demi Getschko* - 04 de junho de 2008
Fonte: Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação 2007

"...ah, esse coqueiro que dá coco,
ah, onde amarro minha rede..."

Ary Barroso

Temos boas notícias na edição 2007 das pesquisas TIC: praticamente todos os brasileiros que navegam na Internet possuem endereço de e-mail . Houve um crescimento vigoroso entre 2006 e 2007, de 63% para 83%, no número dos que usam e-mail . É uma notícia gratificante, mais ainda quando vem acompanhada de uma menor sensação de estorvo que abusos como o spam causam aos internautas. O percentual de pessoas que declarou receber spam passou de 52% em 2006 para 48% em 2007, o que pressupõe uma evolução nas ferramentas de controle das pragas, não um comportamento mais civilizado dos spammers , infelizmente...

Há razões históricas para a existência de algumas das características da rede, que definiram alguns de seus comportamentos e que, para o bem ou para o mal, a tornaram ubíqua e imprescindível.

Precisamos de uma ligeira digressão para situar o assunto. Nos anos 70 e 80, o grande embate na esfera de redes de computadores, dentro do mundo da informática era sobre padrões . Historicamente, padrões em telecomunicação derivavam da CCITT ( Comité Consultatif International Téléphonique et Télégraphique ) hoje UIT ( Union Internationale des Télécommunications ) ou ITU ( International Telecommunication Union ). O processo de geração de padrões era formal, longo, envolvia governos e grandes operadoras de Telecomunicações e seu resultado era, em geral, adotado sem reservas e de forma impositiva dentro dos países participantes. É inequívoco que há enormes vantagens em se ter padrões e, mais ainda, em cenários que são internacionais. Imagine-se o caos que teríamos se, em cada país, a telefonia operasse de forma própria, incompatível com as demais.

Assim, a ITU gerou um modelo, belo, completo, mas complexo e caro de implementar, de uma família de protocolos para rede, batizada OSI ( Open Systems Interconnection ). E, em pouco tempo, houve o compromisso de diversos governos em se adotar, tão logo fosse possível, essa família de protocolos: uma pilha com sete camadas sobrepostas, deste o nível físico à abstração das aplicações. Mais que isso, nas faculdades de engenharia e de ciência da computação, o modelo a ser ensinado passou a ser o OSI (ISO/OSI - International Standard Organization's Open System Interconnect ).

Ocorre que, em outras áreas de pesquisa, muitas vezes "alternativas" (bem à moda do que acontecia nos anos 70), iniciativas diversas avançavam. Formas mais simples de conexão de redes, algumas delas bastante primitivas, outras estruturalmente sólidas e abertas, eventualmente ligadas também aos sistemas operacionais abertos que começavam a ganhar proeminência, caiam no gosto da comunidade acadêmica e ganhavam adeptos. Enquanto os governos criavam programas para implantação da pilha OSI - no Brasil havia o POSIG ( Programa OSI de Governo ), nos EUA o GOSIP ( Government Open Systems Interconnection Profile ) - que atrelavam novas compras de equipamentos à necessidade de sua aderência ao padrão OSI, grupos de interessados no desenvolvimento de redes reuniam-se informalmente e progrediam em propostas de alternativas ao OSI, geradas de modo menos formal, mais aberto (e anárquico) do que o ritual seguido pela ITU. Dentre esses padrões alternativos, um se impôs "de fato" a pilha de 4 níveis, mais simples que a OSI, e que se chamou TCP/IP ( Transmission Control Protocol, Internet Protocol ).

E é aí que chegamos ao busilis da questão: as prioridades do mundo, bem estabelecido, das telecomunicações eram (e são) bem diferentes das prioridades dos que pesquisavam redes nos anos 70. Uma leitura, mesmo que superficial, das definições do TCP/IP, mostra que a preocupação maior é a de diluir controle, aumentar redundância, manter simplicidade, garantir abertura . Privilegiar acesso, uso, robustez e serviço (muitas vezes "gratuito"), sobre segurança na aplicação, controle e autenticação do usuário, e contabilização de uso do sistema.

Desta forma, a Internet - que tirou seu nome da camada IP do TCP/IP - nasceu aberta, com controles mínimos, sem pesada gestão centralizada, sem facilidades para "cobrança exata" de serviços, baseando-se em padrões gerados pela comunidade (principalmente em fóruns como o IETF - Internet Engeneering Task Force ) a partir de discussões abertas a todos e com muito pouco formalismo. Certamente o IETF não era o ambiente ao qual estavam acostumados tanto a indústria de telecomunicações quanto órgãos geradores de políticas governamentais na área. E isso se refletiu por anos de incerteza, nos quais discutiam-se interminavelmente qual o padrão que finalmente vingaria. O tempo e o empuxo da comunidade acadêmica fizeram, finalmente, a balança pender para o lado do padrão de fato, TCP/IP, que acabou sendo reconhecido como padrão de direito e foi, até, pelos gestores de políticas de TI em diversos governos pelo mundo. Um fato historicamente importante ocorreu em 1985, quando a NSF ( National Science Foundation ) dos EUA adotou o TCP/IP para sua nascente rede acadêmica de supercomputadores, que ajudou a cristalizou a escolha dessa solução.

Passado o embevecimento inicial com a rede, em que nos maravilhávamos por poder trocar informações, ilimitadamente, com o mundo, e poder usar computadores localizados em outro continente, as "características" do novo ambiente passaram a ser exploradas, cada vez, por mais pessoas e entidades com as mais diversas intenções. Fiquemos no exemplo do correio eletrônico, uma das primeiras maravilhas da rede. Seu funcionamento é, ainda hoje, basicamente o mesmo que fôra definido nos anos 70. O protocolo que rege a troca de mensagens de correio é o SMTP, onde o próprio nome é revelador: Simple Mail Transfer Protocol . Transparece a intenção de ser simples . Por analogia intencional ao correio postal comum, em que basta jogar uma carta envelopada e selada numa caixa de correio para que ela seja entregue ao destino, o SMTP não tem ferramentas de verificação de remetente ou de destinatário: apenas cumpre sua função de transporte de correio, levando sua "carta", com eficiência e leveza, a quem ela se destina. Fica, assim, claro de princípio que, a par dos ótimos serviços que o correio eletrônico presta, existem possibilidades também muito simples de explorá-lo para o envio de correspondência indesejável, simular remetentes inexistentes ou falsos, ou tentar usar o correio para ludibriar a boa-fé dos menos atentos. Empestear caixas postais alheias com spam é quase que uma conseqüência imediata da abertura e simplicidade do smtp , associada às sucessivas levas de novos usuários, nem sempre afeitos ou propensos a aceitar as regras de ética do mundo acadêmico. "Vírus", "cavalos de tróia" e outras atividades deletérias baseadas em correio eletrônico tornaram-se corriqueiras. Na Internet, conhecer a identidade de alguém é muito mais um "acreditar na declaração espontânea do internauta" do que um processo cartorial em que se busca garantia e autenticidade...

Sempre que se discutem medidas a serem tomadas para prevenir e coibir o mau uso da rede, é necessário que se tenham em conta os seus conceitos fundamentais e que eles sejam respeitados na medida do possível. Na Internet, por construção, o núcleo da rede, o centro, é simples, robusto e aberto, e é assim que deve ser mantido. Se queremos ou precisamos de mais ferramentas ou controles, que os façamos na periferia da rede, sem atravancar o seu centro, sem obstar sua expansão segura. Trabalhemos para criar ferramentas tecnológicas que nos ajudem a conseguir a proteção que desejamos, mas aloquemos essas atividades mais "pesadas" nas bordas da Internet e não em seu núcleo. Lembremos, sempre, que na rede funciona apenas o que é global. Regras ou restrições localizadas, específicas, são fadadas a serem rapidamente contornadas e superadas pela Internet. Finalmente, a rede em si deve ser inocentada dos malfeitos que nós, humanos causamos. Afinal, as deformações que vemos na rede não são diferentes das que vemos na sociedade em geral. A Internet não é, eticamente, nem boa nem má. É um mundo novo, do qual descortinamos apenas a ponta da unha, mas que traz em si, todas as potencialidades, todas as paixões, qualidades e defeitos humanos. Querer dela mais do que pode, tecnicamente, oferecer, é esperar colher jacas em coqueiros...

* Demi Getschko, Diretor-Presidente do NIC.br

Como citar este artigo:
GETSCHKO, Demi. Algumas características inatas da internet. In: CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil). Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação 2007 . São Paulo, 2008, pp. 51-53.